terça-feira, 18 de agosto de 2020

auto retrato geográfico



Mudei de casa, aparei as pontas do cabelo.
Um sentimento de começar de novo veio à tona.

Até que ponto o começar de novo se desliga das memórias?

Deixei na casa antiga 4 anos de vivência com quem eu achava ser o amor da minha vida, e durante o tempo em que vivemos juntos foi, o amor da minha vida. Não é por que acaba que não deu certo. Foram quase oito anos no total, mas a última casa foi a da despedida, foi significativa demais. Deixar essa experiência de lar pra trás doeu, mesmo que eu já estivesse habitando sozinha há quase 3 anos.


Qual o limite da memória?
Qual seu alcance?
O quanto ela é âncora pras nossas vivências?
Quanto dos nossos desejos são permeados por experiências já vividas?

Indo ao mercado essa semana, percebi que agora moro ainda mais perto dos lábios que me proporcionaram o melhor beijo que já experienciei.
Isso me traz lembranças de silêncio e de abandono, mas não existem mais mágoas, deixou de ser dolorido pra ser lembrete de limites.

Meus limites de afeto são extremamente conectados à geografia e às fronteiras físicas. Por ser alguém que caminha, que sente prazer na deriva geográfica e no se perder no território, os espaços [de]marcam meus afetos, minhas lembranças e as potências do meu sentir.

Quais os limites da memória?
Será que o fato de me atrair tanto por pessoas geograficamente distantes tem a ver com as minhas vontades de desbravar caminhos?
Será que tem a ver com a cultura? Com os sotaques?
Com linguagens que fazem sentido a partir de fronteiras?

Essa memória do melhor beijo ainda me toma de assalto, o cabelo entrelaçado em meus dedos, o cheiro, o sabor, a pele, a ressaca de verborragia causada pela confusão mental de uma consciência que percebe que aquele foi o melhor beijo que já experienciou e luta pra que dure pra sempre, mas que não sabe lidar com a situação.

Nunca sei identificar se as obras que eu gosto são realmente construídas pra serem tristes de um jeito bonito ou se eu tenho uma melancolia poética que me assola. Minhas memórias mais marcantes são assim, de uma tristeza bonita, de uma beleza triste. Um conjunto do "poderia ser" com "foi assim" com "não dá pra voltar, reverter".

Minhas memórias me consomem, mas elas me trouxeram até aqui, certo?!

A partir das memórias geográficas e da geografia das memórias, eu tô tentando cortar pontas não só do cabelo, mas de espaços que não quero mais habitar. Já li que quando lembramos, revivemos a experiência, reconstruímos cada detalhe. Acho esse processo traiçoeiro, cheio de ciladas. É mais confortável lembrar das partes boas. É mais fácil também lembrar das partes tristes que são confortáveis, que nos mantém ancorados em espaços doloridos.

Por mais contraditório que isso possa ser.

Se ancorar em tristezas confortáveis nos impede de encará-las de verdade, na profundidade. Nos impede de olhar pro horizonte, pro desconhecido, nos impede de tirar coisas da frente e de jogar coisas fora.

A geografia da minha memória tem caminhando em círculos, ou em uma espiral de ilusão, tomando emprestado aqui o título do álbum do Criolo.

Alguns aprendizados ficam e me elevam, mas no próximo estágio tem algo de similar com certas experiências passadas, parece até um teste pra provar se aprendi mesmo. E assim infinitamente. Talvez não seja à toa que tem um oroboros em tinta cravado na minha pele.

A gente vive de se repetir? A gente se repete pra [conseguir] viver?

Não sei pra onde essa espiral vai me levar, não sei por quanto tempo ainda seguirei revivendo afetos por meio e a partir das memórias. Mas sei que quero romper a espiral, mesmo sem saber se isso é possível. Desbravar novos caminhos, me sinto disposta, provavelmente não pronta ou preparada, mas disposta e com o facão na mão pra embrenhar no matagal de novas memórias.